A
construção de rodovias apresenta como impactos
principais a mortalidade de indivíduos e o efeito de
barreira (BECKMANN et al. 2010;
SEILER
2001), conforme esquematicamente representado na Figura 8.
Figura 8.
Representação esquemática dos impactos
ecológicos das estradas. Associados, resultam na
fragmentação do hábitat. Adaptado de Seiler 2001.
Além destes, inúmeros outros
também podem ser identificados (TROMBULAK & FRISSELL 2000)
e classificados de diferentes formas, considerando-se, por exemplo, a
natureza do impacto (direto ou indireto) (BISSONETTE
2002), o meio impactado (físico,
biótico ou socioeconômico) ou o nível
de organização (indivíduos,
populações ou
metapopulações) (AHERN
et al. 2009). O enquadramento de
dado impacto como direto ou indireto contém algum grau de
subjetividade, visto que frequentemente apresentam
características que permitiriam relacioná-lo a
uma ou outra categoria. Portanto, visto que todos os impactos devem ser
considerados no âmbito do licenciamento ambiental, assume
importância secundária o esquema de
classificação adotado, tendo se optado por
apresentar os impactos sobre o meio biótico, além
de alguns dos efeitos sobre os meios físico e
socioeconômico que, por sua vez, causam impactos aos grupos
animais. Em síntese, são discriminados na Tabela
3.
Tabela 3.
Principais efeitos e impactos ambientais das rodovias sobre a fauna.
Atividade ou
aspecto ambiental
|
Impacto
Ambiental
|
Tráfego
|
Morte de indivíduos.
|
Implantação
física
|
Perda direta de hábitats.
|
Implantação
física
|
Criação de novos
hábitats, refúgios e corredores de
dispersão na faixa de domínio.
|
Implantação
física
|
Fragmentação: A
divisão de um hábitat em
função da instalação de uma
rodovia irá criar dois fragmentos com áreas
nucleares menores e maior proporção de bordas,
afugentando algumas espécies e atraindo outras (SPELLERBERG
2002). A tendência é que ocorra
inicialmente uma distribuição espacial da
variação genética e, posteriormente,
menor diversidade genética, fatores que reduzirão
a viabilidade das populações (BALKENHOL & WAITS 2009).
Da mesma forma, subpopulações menores
são mais vulneráveis a pressões
ambientais. Em termos de indivíduo, os fragmentos podem ser
de dimensões inferiores à área de vida
típica da espécie, fazendo com que não
sejam reunidas as condições
necessárias a sua sobrevivência.
|
Implantação
física e tráfego
|
Perda de conectividade (rotas de
movimentação entre os hábitats).
|
Implantação
física e tráfego
|
Redução ou perda da
permeabilidade (fluxo entre os hábitats).
|
Implantação
física e tráfego
|
Efeitos de barreira: Ocasionam a
redução na movimentação de
indivíduos entre os hábitats e consequentemente
do fluxo gênico, o que eleva a taxa de endocruzamentos e
resulta na perda de diversidade genética (ASCENSÃO & MIRA 2007).
Decorre de componentes como o evitamento das estradas pelos animais, a
inexistência de locais para transpô-las e a morte
por atropelamento, quando os indivíduos tentam
alcançar a margem oposta (BANK
et al. 2002). A
eliminação de rotas físicas
caracteriza a perda de conectividade, ao passo que a dificuldade dos
animais estabeleceram rotas viáveis entre os
hábitats caracteriza a perda de permeabilidade. Este impacto
se estende igualmente à ictiofauna, pois caso as
espécies migratórias não consigam
ultrapassar canais artificiais de drenagem ocorrerá
redução na produção dos
recursos pesqueiros.
|
Implantação
física e tráfego
|
Efeitos de borda: É a
alteração nas características de
hábitats, incluindo temperatura, umidade,
radiação solar e vento, por exemplo (ATTADEMO
et al. 2011).
|
Abertura de frentes de
colonização e expansão
agropecuária
|
Perda direta de hábitats.
|
Implantação
física e tráfego
|
Dispersão de espécies
nativas exóticas.
|
Aumento das bordas dos
hábitats
|
Alteração da qualidade do
hábitat.
|
Geração
de material particulado
|
Deterioração da qualidade do
ar.
|
Emissão de
ruídos
|
Alteração no comportamento
da fauna, especialmente das aves. Sua comunicação
é afetada, com consequências em seu comportamento
de corte e sucesso reprodutivo (HALFWERK et al. 2011).
Dependendo da intensidade do tráfego, os efeitos sobre as
aves podem ser observados em até 2,8 km (SPELLERBERG
2002). Anfíbios podem alterar seus
padrões de vocalização em
decorrência de altos níveis de ruídos
provocados pelo tráfego, com eventuais reflexos reprodutivos
(CUNNINGTON & FAHRIG 2010).
|
Impermeabilização
do solo e redefinição das drenagens
|
Alteração dos regimes
hídricos.
|
Emissões de motores
e liberação de substâncias dos pneus e
pavimento
|
Contaminação das
águas e do solo: metais como Pb, Ni, Cd e Zn podem ter seus
níveis aumentados a uma distância de
até 30 m da rodovia nos solos, 40 a 120 m nas plantas e
até 48 m nos animais (SPELLERBERG
2002).
|
Erosão e
carreamento de sedimentos
|
Alteração nos
hábitats aquáticos. Observada na fase de
construção devido ao favorecimento aos
escorregamentos de terra, assim como em rodovias não
pavimentadas ou pela degradação dos taludes, gera
considerável aporte de sedimentos aos sistemas
aquáticos. Influindo diretamente sobre a turbidez dos
mananciais hídricos e causando distúrbios nestes
ecossistemas, sedimentos podem atingir áreas
sensíveis em uma distância de até 89 m
da rodovia (SPELLERBERG 2002).
|
Iluminação
artificial
|
Pode atrair diversas formas de fauna e alterar
padrões temporais de comportamento de aves (SPELLERBERG
2002).
|
Vibração
dos veículos
|
Afugentamento da fauna.
|
Descarte de lixo
|
Além de causar incêndios e
contaminar o hábitat, garrafas e latas podem se tornar
armadilhas para pequenos mamíferos, cobras e lagartos (SPELLERBERG
2002). Por outro lado, podem também servir de
abrigo para estes mesmos grupos, assim como para aves.
|
Contaminação
acidental por produtos químicos perigosos
|
Mortalidade, especialmente de espécies
aquáticas. Acidentes com veículos transportando
produtos perigosos e a consequente contaminação
de cursos d’água, além de
hábitats próximos à
ocorrência, são inevitáveis na maior
parte das rodovias, quando o tráfego destes produtos
é permitido.
|
A extensão geográfica (“road
effect zone”) e a intensidade dos impactos variam
em função de fatores como o tipo de rodovia
(número de pistas e faixas de rolamento), o volume de
tráfego, a velocidade dos veículos e o grupo
biológico analisado. Uma rodovia com várias
pistas e maior tráfego pode ter menores taxas de mortalidade
quando comparada a uma rodovia de pista simples e menor
tráfego, devido à inibição
de aproximação da fauna e consequente
redução da permeabilidade. Ambas apresentam
efeito de barreira, ainda que devido a componentes distintos. BROCKIE et al. (2009),
por exemplo, identificaram aumento no número de
indivíduos atropelados até um volume de
tráfego de 5.000 veículos/dia, acima do qual
não se mantém esta tendência,
possivelmente em função do evitamento
à estrada. A resposta a estes fatores, entretanto,
não é idêntica nos diversos grupos
animais. BISSONETTE & ROSA (2009),
por exemplo, não observaram variação
na presença e uso dos hábitats em um gradiente de
600 metros perpendicular à rodovia para comunidades de
pequenos mamíferos de regiões áridas.
Infelizmente, em termos populacionais e comportamentais, se
dispõe de dados confiáveis apenas para um pequeno
número de espécies, em sua maior parte
exóticas no Brasil (FAHRIG & RYTWINSKI 2009).
Por exemplo, a resposta ao aumento da densidade da malha
rodoviária ou de tráfego pode ser o aumento da
população de pequenos roedores (RYTWINSKI & FAHRIG 2007) e
a redução da população de
anuros de ambientes úmidos (CARR & FAHRIG 2001; EIGENBROD et al. 2008).
No primeiro caso, as explicações podem estar
relacionadas ao evitamento à estrada,
alterações do hábitat em
decorrência da mesma ou redução no
número de predadores, enquanto no segundo caso a mortalidade
pelo incremento do tráfego é o componente
principal.
A distância em que os efeitos das rodovias sobre os
ecossistemas são significativas também varia em
função do grupo animal analisado, podendo variar
de aproximadamente 200 m para espécies
sedentárias a mais de 2.000 m para tartarugas, crocodilianos
e anfíbios (ARESCO 2005), sendo as
espécies que apresentam maior vagilidade as mais
suscetíveis a atropelamentos (CARR & FAHRIG 2001).
As estradas atraem um grande e variado número de animais:
ectotérmicos aproveitam o calor acumulado no pavimento,
herbívoros se alimentam junto à
vegetação que se desenvolve na faixa de
domínio, aves se alimentam de grãos provenientes
de caminhões mal vedados (ERRITZOE et al. 2003),
anfíbios e répteis podem utilizar taludes e
margens da rodovia para nidificação (ARESCO 2005; SEILER
2001), ao passo que mamíferos fossoriais os
utilizam na construção de galerias (inclusive
podendo comprometer a base da rodovia, como o fizeram
ctenomídeos na rodovia RSC 101 – Estrada do
Inferno), e carniceiros se alimentam da fauna atropelada (ANTWORTH et al. 2005).
Os poucos estudos desenvolvidos na América do Sul,
abrangendo além do Brasil (BAGER
& ROSA 2010, 2011; CHEREM
et al. 2007; COELHO et al. 2008;
CUNHA
et al. 2010; GUMIER-COSTA
& SPERBER 2009; PEREIRA
et al. 2006; A.
O. ROSA & MAUHS 2004; C. A. ROSA & BAGER 2012)
países como Argentina (ATTADEMO
et al. 2011), Colômbia (ARROYAVE
et al. 2006) e Venezuela (PINOWSKI 2005), ressaltam a
carência de informações sobre os
impactos das rodovias sobre a fauna regional. Em uma época
marcada pelo desenvolvimento econômico da região
e, consequentemente, da sua infraestrutura de transportes, o aumento de
estudos com a fauna regional seria particularmente importante. A
literatura produzida nos Estados Unidos, Europa e Austrália
é ampla e contempla diversos fatores e grupos animais
comparáveis aqueles da América do Sul. A
frequência de espécies de mamíferos de
grande porte, no entanto, é substancialmente maior nos
Estados Unidos. Este fato resulta em consequências mais
severas sob a perspectiva da segurança do tráfego
e econômica, pois se estima que ocorram 1,5 milhão
de colisões de cervídeos com veículos
anualmente (¾ do total de colisões entre
veículos e animais), resultando em 210 mortes por ano e
danos materiais aos veículos estimados em 1,1
bilhão de dólares (SULLIVAN 2011). No Brasil, apenas
em situações específicas
colisões com animais silvestres de médio e grande
porte assumem maior relevância, podendo ser citado como
exemplo o trecho da BR 471/RS que cruza a Estação
Ecológica do Taim, onde são frequentes os
atropelamentos de capivaras (Hydrochaeris hydrochaeris).
Pequenos e grandes mamíferos respondem de modo diverso
às rodovias. Enquanto aqueles de grande porte são
mais afetados pela facilidade de acesso de caçadores e
redução dos hábitats, os de menor
porte são as principais vítimas de atropelamentos
e da restrição de
movimentação (SPELLERBERG
2002).
Fatores climáticos, como a temperatura e
precipitação, assim como as
estações do ano, influenciam na taxa de
atropelamentos, devido às variações
nos padrões de atividade ao longo do ciclo de vida assim
como às alterações no volume de
tráfego. Anfíbios e répteis que
realizam migrações em massa nos
períodos reprodutivos são exemplos
característicos da variação da taxa de
atropelamentos relacionada à sazonalidade (ARESCO 2005; CURETON
II & DEATON 2012), inclusive com
recomendações específicas relacionadas
a este fator para a mitigação dos impactos (BARKER
2009). Na Argentina, ATTADEMO
et al. (2011) encontraram
relação significativa entre o aumento da
temperatura e da precipitação, correspondendo aos
períodos de primavera e verão, e as taxas de
atropelamento de répteis e anfíbios. No Brasil,
pode-se observar fenômenos similares nestes mesmos
períodos, como a movimentação
acentuada da tartaruga tigre-d’água (Trachemys
dorbignyi) em rodovias que cruzam hábitats
preferenciais da espécie (rodovia BR 392, em Rio Grande/RS,
por exemplo). Entretanto, estes dados não podem ser
generalizados, devendo ser objeto de avaliação
específica tanto no que se refere aos grupos animais quanto
aos ambientes considerados.
Especialmente quando cruzam áreas úmidas, as
rodovias se caracterizam por afetar a herpetofauna com maior
intensidade, seja pela quantidade elevada de atropelamentos de
espécies que tipicamente se movimentam de forma lenta (AHERN
et al. 2009; HELS & BUCHWALD 2001),
pela reduzida repulsão deste grupo às estradas (BOUCHARD
et al. 2009), pela barreira
física às migrações em
épocas reprodutivas (BEAUDRY et al. 2008,
2010; SPELLERBERG
2002) ou decorrentes de variações
hidrológicas. Além disso, as áreas
abertas junto às estradas oferecem hábitats
atrativos para nidificação de tartarugas, por
exemplo, o que pode aumentar ainda mais o risco de mortalidade (ARESCO 2005). Taxas de mortalidade
superiores a 5% da população de tartarugas
provavelmente ocorrem em diversas regiões dos Estados
Unidos, o que ultrapassa o limiar de 2 a 3 % de mortalidade
passível de absorção pelo grupo para
manutenção de sua taxa de crescimento
populacional positiva (GIBBS & SHRIVER 2002). Em
uma rodovia com quatro pistas, padrão utilizado nas
duplicações brasileiras, e com tráfego
intenso (aproximadamente 20.000 veículos/dia), a
probabilidade de uma tartaruga realizar a travessia com sucesso
é de apenas 2% por tentativa, sendo 95% dos
indivíduos atropelados já na primeira pista
adjacente ao acostamento (ARESCO 2005).
Em estudo desenvolvido na Argentina, os anfíbios foram o
grupo destacadamente mais impactado por atropelamentos, representando
72,92% dos 2.024 indivíduos atropelados, seguidos dos
répteis (14.97%), aves (7.88%) e mamíferos
(4.25%). Este grupo, juntamente com os répteis, é
o mais impactado por rodovias que cruzam áreas
úmidas, ao passo que as aves o são em
áreas florestadas, marsupiais e morcegos em áreas
urbanas e arredores, e mamíferos em paisagens diversificadas
(ATTADEMO
et al. 2011).
Estruturas de drenagem, como bueiros, ainda que mantenham sua
função hidrológica, muitas vezes
não permitem a passagem de todas ou ao menos algumas
espécies de peixes (BELFORD & GOULD 1989). A
existência de barreiras verticais, falta de luminosidade,
velocidade e profundidade da água são
obstáculos que espécies ou formas juvenis podem
não conseguir superar. Mesmo para espécies
não migratórias, a impossibilidade de
movimentação à jusante ou montante da
rodovia pode representar não apenas a
segregação de populações
como até mesmo a extinção de uma
delas, nos casos de secas sazonais em algum dos segmentos isolados (BAKER
& VOTAPKA 1990). Por outro lado, estruturas de
drenagem instaladas ao longo das rodovias criam hábitats
novos para diversas espécies de anfíbios, assim
como algumas podem se beneficiar das rodovias em sua
dispersão (FORMAN & ALEXANDER 1998).
Tal como nos demais grupos animais, a redução da
dimensão dos hábitats florestais devido
à fragmentação resulta em menores
níveis de recursos para a avifauna, sendo positivamente
relacionada com o declínio da abundância e
diversidade de espécies típicas do interior de
florestas. Além das espécies de borda serem
favorecidas, ocorre maior predação e parasitismo
de ninhos, com a consequente redução do sucesso
reprodutivo. Estima-se que a abundância de algumas
espécies é afetada em uma distância que
pode variar entre 200 e 1.200 m da rodovia, com as espécies
de borda sendo favorecidas em uma faixa de até 100 m (SPELLERBERG
2002).
A mortalidade de aves atinge valores da ordem de centenas de
milhões de indivíduos anualmente, destacando-se
os passeriformes como o grupo mais atingido. Um aspecto
ecológico que pode ser relevante quando consideradas
populações fragmentadas é que os
indivíduos atropelados tendem a ser significativamente mais
saudáveis do que aqueles mortos por predadores naturais,
caracterizando uma situação atípica em
relação às forças usuais da
seleção natural (BUJOCZEK et al. 2011;
ERRITZOE et al. 2003).
Em parte devido às desproporções de
tamanho, muitos grupos de invertebrados, e mesmo pequenos
mamíferos (MCGREGOR et al. 2008),
simplesmente não acessam as rodovias, que constituem um
ambiente vasto e inóspito. Esta resposta negativa em
relação à estrutura física
da rodovia (road surface avoidance) é
uma das três causas do evitamento da fauna às
estradas (road avoidance), juntamente com aqueles
oriundos do movimento em si do veículo (car
avoidance) e das emissões de poluentes e
ruídos causados pelo tráfego (traffic
avoidance) (MCGREGOR et al. 2008).
A repulsa à rodovia é um dos fatores que
determinam a intensidade do efeito de barreira, junto com a mortalidade
por atropelamentos. Caramujos constituem um exemplo
característico desta resposta à estrutura
física da rodovia, acarretando no isolamento de
populações. Em grau menor, abelhas, borboletas e
aranhas apresentam padrão similar de comportamento (SPELLERBERG
2002), com consequências inclusive na
dinâmica de populações de plantas
dependentes de polinização mediada por insetos (RAO
& GIRISH 2007). Ainda que empiricamente possa se
avaliar como alta a mortalidade de insetos nas rodovias, simplesmente
pela observação dos para-brisas dos
veículos após transitarem nas mesmas (FORMAN & ALEXANDER 1998),
poucos estudos a quantificam adequadamente (RAO
& GIRISH 2007), sem inferir conclusões
sobre efeitos populacionais.
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